Quase 4 anos de Berlim

Felipe Carvalho
5 min readOct 4, 2018

Há uns 5 anos atrás, eu decidi sair do Brasil, por diversos motivos que (acho) não valem ser repetidos.

Eu tinha uma vida estável: concursado na Petrobras, bom salário, morando num bom apartamento em Laranjeiras. Se eu me arrependo? Todo santo dia, mas por não tê-lo feito antes.

Não fosse essa decisão, eu jamais seria a pessoa que sou hoje. Mais tolerante a diferenças, mais aberto, (bem) menos estressado, ciente da importância de liberdades individuais.

Esse post não é sobre as coisas ruins que me aconteceram nesses 4 anos, mas sobre como Berlim me fez uma pessoa melhor e conquistou meu coração, especialmente em 3 aspectos.

O "foda-se" como filosofia de vida

Thaís é uma das pessoas que eu mais gosto no mundo. Ruiva, falastrona, visceral, carinhosa, fala o que vem a cabeça. Um furacão de energia que te arrasta ou te afasta, não tem muito meio termo com ela.

Ela morou em Berlim por um tempo, na época da faculdade. Antes da minha mudança, ela disse: “a galera lá é muito esculhambada, não liga pra nada”. Organizado do jeito que sempre fui, fiquei meio preocupado. Hoje enxergo a benção que foi viver inserido nessa cultura.

Andando na rua, ninguém liga pro que você veste. Mesmo. Você pode andar vestido de rosa dos pés a cabeça com um óculos em forma de coração no rosto. Pode andar vestido com um saco de lixo preto. Você pode ser homem e ir trabalhar de saia. Você pode avisar ao escritório inteiro que mudou de gênero e na segunda feira todo mundo te chama pelo novo nome. E sim, são todos casos reais que eu vi.

Eu vou a qualquer dos meus lugares preferidos a noite sem me preocupar com dress code. Vou trabalhar vestido do jeito que me sinto melhor e sou valorizado pelo produto do meu trabalho e não pela imagem que cultivo. Cometo erros e tenho a chance de me redimir sem prejuízos a minha carreira.

Não só isso. No âmbito profissional (ou, pelo menos, no meu nicho, de TI) ninguém liga pra sua origem. Se você é africano, asiático, brasileiro, se você acredita em Deus ou no diabo, tanto faz. O que importa é a qualidade do seu trabalho e como você se integra com o resto do time.

Isso é libertador.

Liberdade

Pode ficar pelado na frente de um mar de gente, incluindo senhoras e crianças? Corre senão as senhoras vão ficar peladas antes de você.

Alto verão, todo mundo fora de casa, que parte do parque você escolhe pra fazer um churrasco? Dependendo da hora, só vai sobrar espaço em frente a placa de "Proibido fazer churrasco?".

Você sai da boate encharcado de suor, pega uma bicicleta compartilhada, vai pedalando pra casa na madrugada, para no cruzamento e chega uma moto do lado com dois caras na garupa. O que esperar? Que o sinal mude pro verde e todos sigam pros seus destinos.

Você quase que pode fazer tudo o que você quiser, enquanto não perturbar ninguém.

Isso vale tanto para coisas boas quanto para coisas ruins. Por exemplo, é muito fácil comprar drogas em Berlim. Há parques onde você pode passear com a família em meio aos traficantes. E ninguém te perturba. Você passa literalmente no meio de um grupo de traficantes e ninguém te puxa uma arma, ninguém te enche o saco. Isso, pra mim, é uma liberdade enorme.

E me faz sorrir sempre que paro pra pensar nesses anos aqui. Tanto quanto o último tema.

A importância de um sorriso

Sim, na Alemanha ser simpático é importante. E mesmo sendo brasileiro eu não estava acostumado a isso.

Apesar de morar na Alemanha e numa cidade especificamente conhecida pelo mau humor dos seus nativos, na imensa maioria dos estabelecimentos que fui, em 99% das vezes fui recebido com um sorriso seguido de um “Hallo”. E numa vasta proporção dessas ocasiões, apesar da minha pouca fluência no idioma, as pessoas se esforçaram pra me entender e resolver meu problema (uma vez passado o choque inicial de alguém com a cara tão germânica falar tão mal o idioma). E estou falando de qualquer tipo de estabelecimento comercial ou burocrático que você imaginar: padarias, lojas, escritórios do governo…

Comparando com o setor de serviços do Rio, onde estava acostumado a além do problema em mãos, ter que lidar com o mau humor e má vontade da pessoa do outro lado da mesa, é covardia.

Inúmeras vezes eu vi motoristas de ônibus, tram, metrô, etc, esperando por alguém que chegava correndo no ponto, sem se importar com o horário em que deveriam sair. Incontáveis vezes os próprios alemães me disseram pra ignorar as regras e ver no que dava. E quando chegava atrasado a algum órgão burocrático, nunca me mandaram de volta pra casa, sempre me colocaram de volta na fila pra aquele dia e sem reclamar nem me chamar de irresponsável nem nada do tipo.

E ainda falam que só tem jeitinho e sorriso no Brasil…

O europeu é assim ou assado

Semana passada eu li uma matéria onde uma jornalista brasileira há 4 anos morando em Madri contava sobre seus percalços por lá e afirmava que o "europeu" é assim ou assado.

Cara, na boa, é impossível definir uma identidade européia. Cada país tem culturas e características tão distintas entre si que mesmo eles não acham que isso exista (e sim, eu perguntei a alguns). Se nem dentro da Alemanha se encontra uma unidade cultural, imagina ao se comparar ao resto do continente. Alemães, italianos, espanhóis, gregos, russos, cada um tem o seu jeito de ser e em qualquer país em que você se insira vai ter que se adaptar ou conviver com as diferenças.

Mesmo sendo fã de samba e não techno; sendo uma pessoa extrovertida ao invés de ensimesmado; mesmo sem falar alemão fluente eu fui muito feliz nos últimos quase 4 anos de Berlim (Alemanha é quase outro país pra quem mora aqui).

Eu vou ser sempre ser muito grato a Berlim e a tudo que aprendi nesse tempo por aqui. Mas nada é eterno. Tudo muda o tempo todo. E semana que vem sigo minha jornada por esse mundão de Henrique, Ivone, Guigo, Pedro, Rafa, Dani, Ike, João, Tom, Ronaldo, Rivaldo e Rivarola.

Venga, Barna!

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